Vox Romanica
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Francke Verlag Tübingen
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2000
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Kristol De StefaniLuís de Camões, «Tão suave, tão fresca e tão fermosa»: Apontamentos sobre una canção algo «diferente»
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2000
Maurizio Perugi
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Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa»: Apontamentos sobre una canç-o algo «diferente» Pode afirmar-se, com certeza, que um dos estudos básicos no âmbito da crítica textual camoniana continua a ser, ainda hoje, aquele áureo livrinho intitulado Uma forma provenzalesca na lírica de Camões, com que Emmanuel Pereira Filho criou os fundamentos da investigaç-o filológica da lírica de Camões 1 . Entre outros princípios essenciais, o insigne camonista formulou e aplicou ao texto por ele examinado, pela primeira vez de uma forma nitidamente científica, a distinç-o entre variantes externas e internas. Embora formulada a partir «da conhecida dicotomia saussureana entre significante e significado» 2 , esta oposiç-o corresponde à outra feita entre variantes de forma e de substância, que, como é sabido, foi introduzida na filologia românica europeia por Gaston Paris (Paris/ Pannier 1872), constituindo daí em diante uma das bases distintivas do método lachmanniano aplicado a textos em línguas neolatinas. 1. O esquema métrico e o modelo temático O objecto específico do estudo de Emmanuel Pereira Filho é um poema de Camões que, além de alguns problemas relativos quer à forma gráfica quer às variantes internas 3 , levanta desde logo uma quest-o importante de história literária, 1 Pereira Filho 1974, obra póstuma, pois trata-se da tese de docência livre que Emmanuel Pereira Filho, «o maior especialista brasileiro no que se refere à problematica textual da lírica camoniana . . . deveria ter defendido no Instituto de Filosofia e Letras da Universidade do Estado de Guanabara, se a morte t-o cedo n-o tivesse interrompido a sua brilhante e erudita carreira universitária» (como se lê na «Apresentaç-o» de L. A. de Azevedo Filho). Discípulo de Sousa da Silveira, cujo magistério t-o profunda marca tem deixado na história da filologia brasileira (cf. Silva 1984; Silva 1998), E. Peireira Filho faleceu no dia 31 de Janeiro de 1968, com apenas 43 anos. 2 Citamos integralmente a passagem, devido à sua importância na tradiç-o filológica lusófona: «Chamamos ent-o variantes externas àquelas que n-o ultrapassam de muito o âmbito da estrutura significante, atingindo no máximo certos aspectos conotativos do signo, falado ou escrito; e reservamos a designaç-o de variantes internas para aquelas em que haja, ou em que pelo menos seja lícito presumir, qualquer divergência de significado.» (Pereira Filho 1974: 35). 3 As variantes substantivas identificadas por Emmanuel Pereira Filho s-o apenas duas: Que iguale àquella (aquella, Faria e Sousa 1689: 131) forma, & condiç-o no v. 24, e O sentimento, & a vida me enlevou (elevou, Faria e Sousa 1689: 131) no v. 27. No que se refere ao verbo igualar, Emmanuel Pereira Filho, com base nos exemplos recolhidos e no caso de verbos semelhantes, formula a regra seguinte: objecto directo em frase afirmativa, indirecto em frase negativa (como neste caso), sendo assim provável que o modelo de Faria e Sousa tivesse uma gralha. Quanto ao verbo enlevar, trata-se, segundo o ilustre camonista, de uma lectio difficilior «como que abrangendo a um só tempo as idéias de elevaç-o (espacial) e enlevo (espiritual), numa ambigüidade até bastante sugestiva» (Pereira Filho 1974: 52). Esta liç-o, aliás, vem na linha do «usus scribenque se prende, nomeadamente, com a necessidade de identificar o género poético a que pertence este texto t-o singular no seu esquema métrico. Como veremos mais detalhadamente, a tradiç-o manuscrita e a impressa bifurcam-se em duas soluções distintas quanto ao problema da classificaç-o métrica do nosso texto, pois a primeira considera-o uma sextina, enquanto a segunda julga antes tratar-se de uma ode. O que podemos afirmar com certeza, é que este poema nem pertence a uma, nem a outra categoria. N-o é uma sextina, pois faltam-lhe os dois traços próprios daquela particularíssima forma métrica: primeiro, o emprego da palavra-rima (a sextina caracteriza-se pela presença de seis palavras-rimas constantes do princípio ao fim do texto); depois, a variaç-o na distribuiç-o recíproca destas seis palavras, num complexo mecanismo de alternância oriundo da poesia latina medieval e a que os especialistas chamam «retrogradatio cruciata» 4 . Esta composiç-o poética também n-o é uma ode, tal como a maioria dos editores - tanto antigos, como modernos - defenderam, dado que a ode, apesar de ser caracterizada por um esquema que, em média, possui cinco versos, n-o deixa contudo de apresentar, por um lado, e à semelhança do tipo mais comum de canç-o, correspondências rímicas certas no interior da estrofe e, por outro, mudança das rimas de uma estrofe para outra. Em conclus-o, nem podemos falar de sextina, nem de ode. Deveremos falar, sim, de uma estrutura métrica que, afinal, é a mais comum na lírica trovadoresca, onde é bem conhecida sob o nome de «coblas unissonans»: neste esquema, tanto as rimas como a sua distribuiç-o relativa ficam, a partir da primeira estrofe, imutáveis, o que precisamente acontece no texto de Camões que estamos a analisar. Cabe recordar que as «coblas unissonans» constituem o tipo métrico preferencialmente utilizado na lírica dos trovadores, por comparaç-o a outro tipo, designado por «coblas singulars», em que apenas a disposiç-o dos versos no esquema fica inalterada, enquanto as rimas mudam normalmente de uma estrofe para outra. Nos inícios das modernas literaturas neolatinas, a partir dos poetas sicilianos que obraram na corte do Imperador Federico ii, a relaç-o entre os dois tipos inverteu-se completamente: contam-se, de facto, menos de uma dezena de poesias em «coblas unissonans» na lírica italiana anterior a Dante, que n-o compôs um único texto segundo este esquema 5 . 172 Maurizio Perugi di» de Camões, que nunca emprega elevar («há de ser uma gralha, ou quando muito um hispanismo do tipógrafo», ib.: 60). O texto ainda apresenta dois factores dinâmicos, a saber, uma diérese no v. 43 (Saüdade) e um hiato no v. 20, antes de onde, a que o «usus scribendi» de Camões impõe todavia a correcç-o <a>onde (cf. respectivamente ib.: 95 e 79). 4 Inventada pelo trovador provençal Arnaut Daniel, a sextina difundiu-se na literatura europeia a partir dos modelos de Dante e, sobretudo, de Petrarca. Para a vasta difus-o que esta forma métrica teve em Portugal, cf. Cirurgi-o 1986. 5 Cf. Brugnolo 1995: 325; Pulsoni 1998: 47-48. Como é sabido, a invers-o desta tendência dá- -se com a desvinculaç-o do texto relativamente à música. Até ent-o, a preferência ia essencialmente no sentido de o texto ser acompanhado por uma única melodia (daí o adjectivo «unissonan»). Relativamente a Petrarca, só existe um exemplo de canç-o em «coblas unissonans» no seu Canzoniere 6 : trata-se, evidentemente, de uma excepç-o vistosa, que n-o poderia deixar de chamar desde logo a atenç-o dos petrarquistas. Pietro Bembo é quem primeiro discute este esquema particularíssimo e fá-lo no seu tratado de poética, Prose della volgar lingua ii/ 12, numa passagem onde ilustra a necessidade de n-o distanciar demais duas palavras que rimam entre si, sendo de quatro ou cinco versos o intervalo máximo consentido. Precisamente nesta altura é que Bembo menciona a canç-o Verdi panni como a única transgress-o que Petrarca fez a esta norma, na intenç-o de imitar os trovadores provençais 7 . Contudo, como excelente petrarquista que foi, Pietro Bembo n-o resistiu ao desejo de emular o seu modelo também nesta particularidade, pois ele mesmo imita, numa canç-o sua, este esquema t-o difícil. Entre os imitadores que procuraram igualar Petrarca nesta notável proeza poética está o próprio Camões, precisamente no texto que é objecto de análise filólogica por Emmanuel Pereira Filho. É o editor e comentador Faria e Sousa quem, pela primeira vez, chamou a atenç-o para o facto de este texto de Camões (que ele considera uma ode) reproduzir o esquema da canç-o n° 29 de Petrarca. Além disso, Faria e Sousa apresenta, no seu comentário, uma comparaç-o entre as primeiras estâncias das outras imitações que foram, sucessivamente, feitas por Bembo, Groto, Perez e Fern-o Álvares 8 . Na verdade, a estrutura sintáctica e temática da primeira estrofe é fundamentalmente a mesma em Bembo e Camões, relativamente ao arquétipo petrarquiano: Petrarca (Rvf 29) Verdi panni, sanguigni, oscuri o persi non vestì donna unquancho né d’òr capelli in bionda treccia attorse, sì bella | com’è questa che mi spoglia d’arbitrio, et dal camin de libertade seco mi tira, | sì ch’io non sostegno alcun giogo men grave. Bembo (Asolani ii, 16) 9 Si rubella d’Amor, né sì fugace non presse erba col piede, né mosse fronda mai Ninfa con mano, né trezza | di fin oro aperse al vento, 173 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» 6 Ressalvando, naturalmente, o caso muito particular de S’i’ ’l dissi mai (Rvf 206), cujo esquema assenta em três rimas fixas com colocaç-o variável, conforme um modelo que Petrarca imitou mais uma vez de Arnaut Daniel (cf. Perugi 1991a: 201-28; Pulsoni 1998: 50-52). 7 Texto em Dionisotti 1966: 154ss. O assunto foi retomado no século xviii por outros teóricos como Chiabrera e Affò (cf. Menichetti 1993: 535s.). 8 Cf. Faria e Sousa 1689, vol. 3: 130-33. Reparando parcialmente os prejuízos anteriores, o comentário de Faria e Sousa está a ser revalorizado por uma corrente da crítica actual, cf. p. ex. Pires 1995. 9 Texto em Dionisotti 1966: 411-13. né ’n drappo schietto care membra accolse donna sì vaga | e bella, come questa dolce nemica mia. O núcleo semântico de base pode ser indicado com a fórmula seguinte: (n-o existe) nenhuma mulher t-o bela como esta . Para exprimir o significado de n-o existe , Petrarca utiliza as perífrases «nunca vestiu roupa, nem entrelaçou o seu cabelo em tranças de oiro». Bembo, embora tenha guardado a estrutura básica, acaba contudo por transferi-la para o fim da estrofe, colocando no início um duplicado da imagem feminina e utilizando o mesmo molde sintáctico. Mais que de uma mulher, trata-se de uma ninfa, cuja beldade sai reforçada por uma dupla adjectivaç-o ( esquiva e fugidia ) 10 . Quanto ao conceito n-o existe , Bembo utiliza mais duas perífrases também de origem clássica, «nem pisou a verdura com os divinos pés» 11 e «nem mexeu os ramos com sua m-o». Note-se ainda que, no fim da estrofe, Bembo emprega uma express-o correspondente ao incipit do soneto camoniano Cara minha inimiga, sendo muito frequentes ambas as variantes, como é óbvio, na lírica petrarquiana 12 . Afastando-se da duplicaç-o de imagem realizada por Bembo, Camões recupera a disposiç-o sintáctica de Petrarca, ao organizar a sua estrofe inicial segundo a mesma bipartiç-o rigorosa: a primeira parte fica consagrada à similitude e a segunda, à descriç-o da mulher amada. Contudo, em Camões encontram-se pelo menos duas das inovações introduzidas por Bembo: o primeiro verso consiste também numa acumulaç-o de adjectivos (referidos, neste caso, à Aurora) e, além disso, a locuç-o fermosa, mansa fera corresponde, no plano sinonímico, a dolce nemica mia. A ninfa de Bembo, que Camões substitui por outra figura mitológica (ou seja a Aurora), reaparece na Ligeira, bela ninfa, linda, irosa (ou, mais provavelmente, <a>irosa) a quem é dedicada toda a terceira estrofe. A proximidade entre Camões e Bembo 13 (note-se que ambos utilizam uma rima comum, -ento, com a mesma palavra em rima tormento) fica, aliás, confirmada por uma análise mais detalhada da canç-o bembiana. Após a primeira estrofe, dominada pelas similitudes da ninfa e da donna, a segunda propõe o tema oximórico de 174 Maurizio Perugi 10 Note-se que rubella d’Amor tem origem manifestamente no texto de Petrarca, v. 18 rubella di mercé desapiedada . 11 Como diz o próprio Camões nos v. 39s. da canç-o Manda-me Amor, n° iv na ediç-o de LAF 1995; e como diz, também, o seu epígono Fern-o Álvares, combinando Camões e Bembo na sua imitaç-o; é a Ode xiii na ediç-o organizada por Costa Pimp-o: T-o crua Ninfa, nem t-o fugitiva,/ com lindo pé pisou/ verde erva, nem colheu as brancas flores (claro que, conforme diremos mais abaixo, o nome do género poético é t-o incorrecto como a atribuiç-o do texto a Camões). 12 Conforme as concordâncias nos indicam (cf. Accademia della crusca 1971), Petrarca apresenta como variantes principais la dolce mia nemica/ la mia dolce nemica, la nemica mia/ la mia nemica, de la dolce et acerba (amata) mia nemica; cf. porém Rvf 315.6 la mia cara nemica (a cláusola la mia nemica já se encontra em Dante, Tutti li miei pensier, v. 13). 13 A funç-o quer de Pietro Bembo, quer de outros autores do Renascimento italiano, como intermediários entre Petrarca e Camões, fica devidamente ilustrada no ponderado e importante trabalho de Rita Marnoto (cf. Marnoto 1997). belleza e castità, v. 11, correspondente em Camões a cousa bela e rigorosa, v. 23. Em geral, pode constatar-se o facto de a segunda estrofe de Bembo e a quarta de Camões apresentarem uma semelhança muito estreita: vejam-se, por um lado, os dois sintagmas la molesta/ secura leggiadria, v. 20s., e del suo penser gentile e strano, v. 24, que muito se assemelham com antre a doce dureza e mansid-o, / primores de beleza desusada, v. 31s.; e, por outro, a correspondência entre ch’ei la sua doglia oblia, v. 14, e que a pena lhe agradeço, v. 28, um e outro versos finais da estrofe 14 . Pode, finalmente, observar-se que a canç-o de Bembo está organizada de forma circular, pois entre as duas primeiras estrofes (das quais falámos acima) e as duas últimas, de inspiraç-o neo-platónica, encontram-se quatro estrofes, cada uma com base numa similitude entre a natureza e a mulher amada: rosa o giglio (iii), Caro armellin (iv), Bel fiume (v), face e vento (vi). É muito significativo que cada uma das quatro primeiras estâncias de Camões apresente igualmente uma comparaç-o da mulher amada, respectivamente com a Aurora (i), com uma Bonina pudibunda ou fresca rosa (ii), com uma Ninfa (iii) e, de forma mais genérica, com qualquer cousa bela e rigorosa (iv). Esta relaç-o de tipo estrutural torna-se ainda mais evidente com as similitudes que existem entre a terceira estrofe de Bembo e a segunda de Camões; na verdade, uma e outra apresentam a mesma construç-o no início, para além de um hemistíquio muito semelhante, que introduz a segunda parte da comparaç-o: Sola in disparte, ov’ogni oltraggio ha pace, Bonina pudibunda ou fresca rosa rosa o giglio non siede nunca no campo abriu . . . . . . quel vago fior como esta flor Portanto, pode identificar-se, neste caso em Bembo mais que em Petrarca, o modelo retórico e filosófico de Camões, pois, além da sintaxe oximórica, Bembo é quem proporciona mais dois traços marcantes ao texto camoniano, a saber, a organizaç-o da primeira parte do poema em séries de similitudes e a orientaç-o neo-platónica (com efeito, alma e dolce s-o as palavras mais representativas da canç-o bembiana). Apesar da profunda recodificaç-o levada a efeito por Bembo e parcialmente assumida por Camões, só a primeira estrofe seria suficiente para demonstrar que o modelo petrarquiano continua presente no discurso poético de Camões: depois da imagem dos cabelos enredados (cf., no texto de Camões, v. 40s.) 15 , os v. 4-7 desenvolvem tanto os motivos da perda do arbítrio e da liberdade de juízo, como a 175 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» 14 Para outras semelhanças no mesmo âmbito oximórico veja-se, no texto de Bembo, quanta spande dal ciglio altero e piano/ dolcezza, v. 31s., e asprezza dolce e mio dolce tormento, v. 53 (toda esta última estrofe está ocupada pela repetiç-o do adjectivo dolce, que aparece nada menos que seis vezes) e, no texto de Camões, com t-o doce gesto, irado e brando, v. 26, e antre a doce dureza e mansid-o, v. 31, já acima citado. De notar também a correspondência entre beltate onesta, v. 57, e alta pureza deleitosa, v. 36. 15 Para o êxito que teve, na literatura portuguesa do século xvi, o cânone bembesco da beleza feminina, representado pelo soneto Crin d’oro crespo e d’ambra tersa e pura, cf. Marnoto 1997: 524-28. metáfora do jugo de amor, um e outro temas bem camonianos, os dois patentes aqui mesmo nos v. 27 (o sentimento e a vida me enlevou) e 14 (a pena que padeço) 16 . Outro conceito também presente na canç-o de Petrarca é a alienaç-o ou desapossessamento de si mesmo, por causa de amor, Da me son fatti i miei pensier’ diversi, v. 36, correspondendo a por quem me desconheço, v. 7 17 . Por fim, convém ainda salientar os três eixos estruturais retirados por Camões do arquétipo petrarquiano, a saber: 1) a menç-o cronológica do início do seu namoro (l’ora e ’l giorno, v. 22), que Camões vai precisar recorrendo a uma determinaç-o astrológica também imitada de Petrarca; 2) o sentimento da incapacidade do instrumento poético, como que para expressar condignamente a beleza sublime da mulher amada (So io ben ch’a voler chiuder in versi/ suo laudi, v. 50s. = Bem cuidei de exaltar em verso ou prosa, v. 29); 3) a funç-o de elevaç-o espiritual própria dos olhos da mulher amada, motivo expresso por Petrarca na última estrofe (chi gli occhi mira d’ogni valor segno) e desenvolvido por Camões no comiato, onde acaba por tomar um sentido nitidamente neo-platónico. Em conclus-o, torna-se evidente que as três canções de Petrarca, Bembo, Camões constituem um conjunto, ou melhor dito, três etapas de uma evoluç-o temática muito coerente, enquanto nas outras imitações, o tema do elogio da mulher amada é desenvolvido de forma bastante diferente. 2. O modelo provençal Outra intervenç-o de grande mérito de Faria e Sousa reside no facto de ter completado o texto de Camões, acrescentando-lhe os dois versos do comiato por ele encontrados num manuscrito de que, aliás, se ignora o paradeiro actual. N-o pode haver dúvida alguma sobre a autenticidade destes dois versos, n-o apenas por razões linguísticas e estilísticas, mas sobretudo de um ponto de vista estrutural, se considerarmos que este comiato é absolutamente necessário para a recuperaç-o do esquema métrico na sua integridade aparente 18 . Tal como Emmanuel Pereira Filho justamente salientou, trata-se de um caso muito instrutivo do ponto de vista filológico por duas razões: primeiro, por estarmos em face de um exemplo palmar do que se chama, em crítica textual, «tradiç-o indirecta»; depois, por ser quase certo que a falta do comiato na tradiç-o impres- 176 Maurizio Perugi 16 Cf. também Verdi panni, v. 15s. Di quanto per Amor già mai soffersi,/ et aggio a soffrir ancho. 17 Cf. a canç-o de Bembo, v. 26 sì novamente me da me disciolse. 18 Devido à sua relaç-o etimológica, a primeira palavra-rima em -eço (por quem me desconheço) e a palavra-rima final do comiato (nos quais a Deus conheço) correspondem aos dois extremos de uma composiç-o distintamente circular. Como é sabido, na versificaç-o portuguesa a rima é considerada «medíocre» quando a homofonia se dá entre o mesmo radical. Pelo contrário, na tradiç-o trovadoresca isto seria um exemplo de rima cara, ou melhor dizendo, de «rime dérivée» (na terminologia de Mölk-Wolfzettel: cf. Billy 1984). Os trovadores costumavam, aliás, retomar no comiato uma ou mais palavras-rimas já utilizadas ao longo do poema. sa (a única de que podemos dispor no caso de este poema) resulta de uma intervenç-o da censura preventiva, ou mesmo deliberada, que tanta importância e tantas consequências teve sobre a transmiss-o da obra lírica camoniana 19 . Embora n-o fosse indispensável para a correcta identificaç-o da forma métrica deste texto de Camões, a recuperaç-o do comiato original confirma, de forma indiscutível, que se trata de uma verdadeira canç-o composta em «coblas unissonans» que imita a canç-o n° 29 de Petrarca. Além da designaç-o apropriada do género e do tipo métrico, esta canç-o apresenta mais dois problemas filológicos de relevo, intimamente ligados: o primeiro diz respeito à possibilidade de determinarmos o número original de estâncias, o outro refere-se à hipótese de Petrarca ter imitado um dado autor provençal. Ao contrário de Bembo, que neste caso n-o faz sen-o uma alus-o muito genérica aos poetas provençais 20 , o erudito italiano Alessandro Tassoni, falando desta mesma canç-o de Petrarca 21 , menciona de forma explícita uma canç-o do trovador Arnaut Daniel, cujo incipit é Er vei vermeilz, vertz, blaus, blancs, gruocs 22 . De Tassoni é que, muito provavelmente, Faria e Sousa recolheu esta informaç-o, assim como a apreciaç-o bem mais negativa do esquema métrico, julgado (como já no tratado de Bembo) excessivamente requintado, artificial e pouco favorável à express-o poética 23 . 177 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» 19 Esta mesma conjectura surge formulada pelo próprio Faria e Sousa: «Ya quando no tratava destos estudios, hallé otro manuscrito con este remate, que es el que al principio dixe faltava: y es creible que lo quitaron por dezir, que en la belleza de aquellos ojos reconocía a Dios»(p. 133). 20 Prose della volgar lingua ii, 12 (Dionisotti 1966: 155): «Nondimeno egli si può dire che non sia bene generalmente framettere più che tre, o quattro, o ancora cinque versi tra le rime; ma questi tuttavia rade volte. Il che si vede che osservò il Petrarca; il qual poeta, se in quella canzone, che incomincia Verdi panni, trapassò questo ordine, dove ciascuna rima è dalla sua compagna rima per sette versi lontana, sì l’osservò egli maravigliosamente in tutte le altre; e questa medesima è da credere che egli componesse così, più per lasciarne una fatta alla guisa, come io vi dissi [cf. i, 9], molto usata da’ provenzali rimatori, che per altro». 21 Depois de salientar a muito maior frequência das rimas oxítonas em língua d’oc do que na língua italiana (traço que mais facilita, a seu ver, a possibilidade de utilizar rimas independentes em sucess-o num mesmo esquema métrico), Tassoni observa o seguinte: «In questa sorte di canzoni fu stimato assai A. Daniello: ed una delle sue incomincia a punto sul tenore di questa Ar vei vermeils, vertz, blaus, blancs e grocs» (Tassoni 1609: 79). 22 Texto provisório, tirado da nova ediç-o crítica a organizar pelo autor destas linhas. O v. 7 desta canç-o (E Jois lo gras, e l’olors d’Enoi gandres), n° xiii em todas as edições modernas de Arnaut Daniel, teve uma certa importância na literatura brasileira, por ser precisamente Noigandres o nome da revista oficial do Concretismo, fundada em S-o Paulo em 1952 por Décio Pignatari e Augusto de Campos. Este título n-o foi retirado directamente da canç-o xiii de Arnaut Daniel, mas sim do Vigésimo dos Cantos de Ezra Pound, n-o sendo inútil recordar que a locuç-o, incompreensível na época (cf. Lippi/ Peron 1994: 8s.), significa remédio contra o fastio , ou seja, na língua do artígrafo Mateo de Vendôme (Ars versificatoria 2,35), fastidii remediale blandimentum (Munari 1988: 154). 23 «Questa canzone così oscura e sconvolta» (Tassoni 1609, ap. Carducci/ Ferrari 1899: 47); «De las Odas de mi Maestro esta es la menos buena; y procedió esto de su invención . . . porque el estar acudiendo en todas las estancias con consonantes a la primera embaraça mucho la libertad para dezir algo de buen aliento» (Faria e Sousa 1689: 130). Corroborada pela semelhança aparente do cúmulo assindético que caracteriza os versos iniciais, esta comparaç-o entre Er vei de Arnaut Daniel e Verdi panni de Petrarca permaneceu intacta até aos nossos dias, passando de um crítico para outro: o mesmo Emmanuel Pereira Filho emprega a express-o «uma canç-o de molde arnaudiano», citando Gianfranco Contini sobre a filiaç-o de um texto relativamente ao outro 24 . Quanto ao ilustre filólogo italiano, n-o faz, neste caso, sen-o repetir o que foi dito por Carducci-Ferrari no comentário, ainda hoje fundamental, feito ao Canzoniere de Petrarca, e relembrar o que têm dito e redito, neste fim do século, os outros discípulos italianos da escola positivista 25 . Até na mais recente ediç-o comentada de Petrarca (que pretende substituir-se, aliás n-o sem raz-o, à que foi organizada por Carducci-Ferrari), a filiaç-o permanece intacta e intangível, embora o cotejo tenha finalmente sido ampliado até abranger duas outras canções do mesmo Arnaut Daniel, escritas também em «coblas unissonans» 26 . Só falámos de semelhança aparente entre Verdi panni, sanguigni, oscuri o persi e Er vei vermeilz, vertz, blaus, blancs, gruocs/ vergers, plais, plas, tertres e vaus devido ao facto de as duas enumerações iniciais se referirem a realidades manifestamente bem distintas. Na verdade, Arnaut aproveita unicamente um dos motivos mais conhecidos da lírica trovadoresca, precisamente aquele que os filólogos alem-es designam por «Natureingang» e que poderíamos traduzir por «exórdio primaveril». Como é sabido, muitas canções de amor trovadorescas começam por uma rápida evocaç-o da primavera (e até, algumas vezes, do outono ou do inverno). É o que faz o próprio Camões no nosso texto imitando, aliás, Petrarca. A grande e genial inovaç-o de Arnaut Daniel consiste, porém, em ter aplicado ao motivo exordial uma figura de estilo recomendada por contemporâneos seus, autores de manuais retóricos em latim, que a designam por «versus rapportati» ou «singula singulis» 27 . Claro que esta técnica requintadíssima n-o é o que mais interessa aos críticos e leitores modernos. O que lhes chama a atenç-o é, sobretudo, a enumeraç-o assindética de palavras, geralmente monossílabas ou bissílabas, que ocupam o verso em toda a sua extens-o, numa figura retórica que os filólogos alem-es chamam «versefüllendes Asyndeton». Este é, com efeito, um dos mais importantes estilemas que Petrarca colheu em Arnaut Daniel, como também salientou Contini na passagem acima referida 28 e como comprova a precis-o com que, no Triumphus 178 Maurizio Perugi 24 Cf. Contini 1960: ix. 25 Carducci/ Ferrari 1899: 44-47; Scarano 1901: 343; Rigutini/ Scherillo 1918: 49. 26 Santagata 1996: 157 (com referência a Bettarini 1993). Caberá assinalar que o cotejo entre os dois textos já tinha dado origem a resultados inaceitáveis do ponto de vista métrico, no estudo de Grubitzsch-Rodewald 1972 (cf. o que observei em 1991b: 371). 27 Numa clara alus-o à correspondência biunívoca entre cada adjectivo do primeiro verso e cada substantivo do verso seguinte. Baste aqui remeter para as clássicas observações de Curtius 1948: 288. 28 Citando mais dois exemplos extraídos de Petrarca, a saber non edra, abete, pin, faggio o genebro (Rvf 148.5) e fior’, frondi, erbe, ombre, antri, onde, aure soavi (Rvf 303.5). Cupidinis iv, 121-23, foi recriado este incipit arnaudiano: E rimbombava tutta quella valle/ d’acque e d’augelli, ed eran le sue rive/ bianche, verdi, vermiglie, perse e gialle 29 . Embora seja também uma enumeraç-o colocada logo no início do poema, o incipit da canç-o n° 29 de Petrarca n-o é, na realidade, um exórdio primaveril, mas sim um catálogo de cores utilizadas para tingir as roupas femeninas. Conforme salienta Castelvetro no século xvi, este incipit descreve as diferentes idades e condições das mulheres, com base nas cores das roupas habitualmente vestidas por elas: verde e roxo para as meninas, preto para as viúvas, escuro para as casadas. De qualquer forma, a enumeraç-o apresentada por Petrarca, longe de ser uma invenç-o sua, é já muito usual, visto que nos editos eclesiásticos da época aparece muitas vezes a propósito das roupas dos clérigos: veja-se, por exemplo, «pannis sericis, aut viridibus, aut rubeis non utantur» num edito do ano de 1240, ou «pannis rubeis, viridibus, & croceis» em outro de 1261 30 . Sobre a disposiç-o dos adjectivos no incipit petrarquiano, é de observar, enfim, que a colocaç-o polarizada de sanguigni, antes da cesura, e persi em rima, é indício certo de uma alus-o implícita à metáfora empregada na Commedia por Francesca da Rimini 31 . Além das diferenças de que já falámos a propósito destes dois incipit, Er vei (de Arnaut) e Verdi panni (de Petrarca) partilham ainda dois traços distintivos do ponto de vista métrico: primeiro, como já sabemos, as duas canções s-o compostas em «coblas unissonans»; segundo, todas as rimas s-o diferentes umas das outras, pois, como diz Faria e Sousa, «La invención es que en la primera estancia no ay consonantes» (p. 130). De facto, enquanto o primeiro destes dois traços é - como já foi dito - bem frequente entre os trovadores provençais, o segundo é sensivelmente mais raro. A estância composta por rimas livres ou independentes (ou seja, que n-o apresentam alguma relaç-o entre si no interior da estrofe) é uma tradiç-o estabelecida pelos inventores do «trobar clus»: com efeito, os precursores mais antigos remontam a Marcabru e Raimbaut d’Aurenga, em cujos textos há, contudo, um mecanismo de compensaç-o que consiste no emprego, total ou parcial, de «rims derivatius» 32 . Na verdade, o trovador quem mais utiliza o procedimento da rima «irrelata» 33 no interior da estância é o próprio Arnaut Daniel; das dezessete 179 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» 29 Cf. o comentário de Pacca/ Paolino 1996. 30 Mansi 1780: 533 e 1056. Cf., por outro lado, Langlois 1914-24, Roman de la Rose 20946-49 (passagem também citada por Du Cange s. melocinia) con li siet bien robe de seie,/ cendaus, melequins, atebis,/ indes, vermauz, jaunes e bis,/ samiz, diaspres, cameloz. As substâncias vegetais usadas na indústria tintureira medieval foram recentemente ilustradas por Delort 1990. 31 Empréstimo evidente da linguagem mercantil, segundo monstrou Contini 1976: 129s. («presa a prestito dal linguaggio merceologico»); cf. Dante, Conv. iv, 20: «Lo perso è uno colore misto di purpureo e di nero, ma vince lo nero, e da lui si dinomina». 32 Cf. Marcabru 293,14; Raimbaut d’Aurenga 389,22 e 389,26. 33 Rima estrampa, na linguagem dos trovadores (cf. Menichetti 1993: 121s.): isto é, solta ou branca. composições que lhe s-o atribuídas sem controvérsia, nove pertencem a esta tipologia e repartem-se, aliás, em dois grupos, o primeiro com estâncias de sete versos, o segundo com estâncias de oito 34 : 875 xv = 29,18 Sols sui 7 décasyllabes xiii = 29,4 Er vei 4 octosyllabes + 3 décasyllabes xvi= 29,3 Ans que 4 heptasyllabes + 3 décasyllabes X = 29,10 En cest sonet 7 heptasyllabes 879 xvii = 29,17 Si˙m fos 8 décasyllabes xiv = 29,1 Amors e jois 7 octosyllabes + 1 décasyllabe xi = 29,9 En breu 6 heptasyllabes + 2 octosyllabes xii = 29,8 Doutz brais 4 + 6’ + 6 décasyllabes Tendo em conta a influência preponderante que Arnaut Daniel exerceu sobre Petrarca 35 , é muito provável que, do ponto de vista métrico, a canç-o Verdi panni do poeta italiano tenha sido composta segundo o modelo do trovador provençal. Se a designaç-o de «molde arnaudiano» é incontestável, muito mais incerta é a possibilidade de reconhecermos na canç-o xiii de Arnaut o próprio arquétipo do texto de Petrarca (e, por consequência, de Bembo e de Camões). Com efeito, qual é o motivo que, neste caso, teria determinado a escolha de Petrarca? Com certeza, n-o foi o número de estâncias, pois Er vei só tem seis. Nem foi o tipo ou a disposiç-o dos versos utilizados, por ser diferente de um para o outro texto. Nem pode, sequer, qualquer outra hipótese fundar-se no facto de a estância comportar o mesmo número de versos, neste caso sete, pois a estância de Petrarca apresenta, a mais, duas rimas internas. Em conclus-o, apenas a semelhança sintáctica entre os dois incipit - embora muito superficial, como já vimos - poderá explicar o êxito de que tem desfrutado, até hoje, a comparaç-o estabelecida por Tassoni entre os dois poemas. É ainda oportuno chamar a atenç-o para o facto de a presença das duas rimas internas ser um traço marcante no esquema métrico da canç-o de Petrarca, na medida em que, como diremos abaixo, é a tentativa de reproduç-o desta característica que proporciona as maiores dificuldades aos imitadores, ao ponto de alguns deles n-o conseguirem concretizar os seus intentos. Portanto, sendo nove, e n-o sete, as rimas de cada estância, nem o primeiro, nem o segundo dos dois tipos métricos acima assinalados pode ser comparável ao esquema utilizado por Petrarca 36 : 180 Maurizio Perugi 34 Os algarismos romanos referem-se às edições críticas correntes, os árabes ao repertório de Pillet/ Carstens 1933. 35 Basta citar as nove sextinas que Petrarca incluiu no Canzoniere, além da complexa rede de relações fónicas e temáticas estabelecidas com base no nome de Laura. 36 Com excepç-o do ternário e do quinário em correspondência com as duas rimas internas, este esquema comporta evidentemente, conforme o uso italiano, cinco hendecassílabos mais dois quebrados (heptassílabos). A b C (d3) E F (g5) H i N-o há, no repertório de Frank, sen-o um esquema susceptível de ser relacionado com aquele; trata-se precisamente do n° 881, relativo a BdT 233,4: A b(2) C d(2) E F (g4) H i(6) A esta semelhança estrutural vem, aliás, acrescentar-se a presença de dois versos muito breves 37 , que também poderiam ser comparados a rimas internas e que, de qualquer forma, representam outros tantos pontos de crise neste difícil esquema métrico. Quem é, afinal, o autor desta composiç-o, única também (ou quase, pois, conforme diremos, trata-se muito provavelmente de imitaç-o)? O texto só se encontra nos manuscritos provençais K, anonimamente, e C, em que é atribuído, sem muita verosimilhança, a Guilhem de Saint Gregori. O que mais nos importa, porém, é o incipit Drez et rayson es qu’ieu ciant e˙m demori ter sido citado pelo próprio Petrarca na sua canç-o n° 70. Todos os especialistas, sem excepç-o nenhuma, concordam no facto de Petrarca estar convencido de citar um texto do seu trovador preferido, isto é, Arnaut Daniel 38 . Portanto, a nosso ver, a conclus-o mais provável é que Verdi panni de Petrarca seja, afinal, uma canç-o de molde n-o propriamente arnaudiano, mas sim pseudo-arnaudiano 39 , o que aliás é bem sintomático da forma como foi recebida por Petrarca a poesia trovadoresca. Com efeito, conforme demonstram os estudos mais recentes, Petrarca deixou-se enganar, em várias ocasiões, pelas atribuições desprovidas de qualquer fundamento, que lhe apresentavam os cancioneiros provençais de que pudera dispor 40 . 3. Número de rimas e número de estrofes nas imitações O autor de Drez et rayson (ou antes Razo e dreyt, segundo a variante do manuscrito C) imita, embora de forma imperfeita, um esquema que já foi aproveitado por Cerverí de Girona. Este poema (BdT 434a,20) comporta mais uma rima interna no primeiro verso da estância, como se vê no incipit Em breu sazo | aura˙l jorn 181 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» 37 Com excepç-o da única rima interna (g4), s-o cinco decassílabos femeninos (correspondentes a outros tantos hendecassílabos, conforme o uso italiano) mais três quebrados com dois, dois e seis sílabas respectivamente. 38 Cf. o resumo da quest-o em Pulsoni 1998: 244-57. 39 Conforme dissemos há mais de dez anos (cf. Perugi 1985). 40 Esta tendência a dilatar as obras dos trovadores mais famosos, acrescentando-lhe composições apócrifas, é, aliás, muito típica dos compiladores dos cancioneiros provençais. Ainda n-o devidamente investigado, este fenómeno n-o é sem lembrar a «fase diastólica» que, começada no fim do século xvi, caracteriza até hoje a obra lírica camoniana. pretentori, característica que n-o é mantida pelo autor da canç-o 233,4 41 . De forma análoga, os imitadores de Verdi panni n-o conseguiram, na sua maioria, reproduzir exactamente as duas rimas internas presentes no modelo. Com efeito, este difícil poema de Petrarca tem sido imitado por seis autores apenas, com inclus-o de Camões 42 : além da composiç-o de Pietro Bembo - cujo texto também servira de modelo, quer a Luigi Groto, quer ao espanhol Alonso Perez 43 - existe uma imitaç-o do texto camoniano feita por um epígono anónimo 44 , e outra feita pelo próprio Faria e Sousa com base no texto de Groto, mas aumentando o número de estrofes até doze 45 : a estas cabe mais acrescentar duas composições de Fern-o Álvares d’Oriente 46 . Note-se que tanto na macroimitaç-o de Faria e Sousa, como nas de Alonso Perez, de Fern-o Álvares d’Oriente e do epígono anónimo de Camões, há várias imperfeições no que se refere às duas rimas internas do modelo petrarquiano: 182 Maurizio Perugi 41 O que mais uma vez confirma ser Cerverí o modelo deste texto, e n-o vice-versa, como tem sido defendido por outros críticos. Resumindo a quest-o, num volume petrarquiano aliás t-o rico como interessante, Pulsoni 1998: 244-57 também defende a anterioridade de 233,4, mencionando mais casos em que Cerverí imita esquemas de outros autores; no entanto, a relaç-o entre 434a,29 (Cerverí) e 95,2 (Obispo de Clermont), que pareceria a mais persuasiva da lista («di particolare interesse»), n-o é correcta: primeiro, porque os dois esquemas s-o diferentes (versos de dez síllabas em Cerverí, de doze no Obispo); depois, porque a rima interna que Cerverí teria acrescentado ao esquema, n-o existe na realidade (cf. Coromines 1988, vol. 2: 152s.). Bem pelo contrário, este exemplo num texto de Cerverí de uma rima interna acidental ou imperfeita oferece um bom paralelo para alguns rasgos de imitaç-o também imperfeita acaso presentes no nosso texto 233,4, na medida em que cada um dos dois manuscritos parece ter conservado, por sua conta, um princípio de imitaç-o de rima interna (Dreg e razo[s] no ms. K, Dous m’es e bo no ms. C) que o autor teria desde logo abandonado. Na verdade, graves razões, quer linguísticas, quer filológicas, continuam a militar contra uma invers-o cronológica entre os dois poemas. Mais uma vez lembrando que 233,4 n-o se pode definir como uma canç-o de amor no sentido próprio do termo, e sendo o texto de Cerverí um sirventês, a explicaç-o mais natural (e bem frequente em casos análogos) continua a ser aquela que Pulsoni propõe neste caso para a relaç-o entre Cerverí e o sirventês do Obispo de Clermont: « ... non si può escludere ... che anche esso sia un’imitazione d’una canso non pervenuta, cui potrebbe quindi rifarsi anche il trovatore catalano» (p. 237 N32). 42 Cf. Pereira Filho 1974: 112ss.; LAF 1995: 598-600. Faria e Sousa fala, porém, de mais um imitador italiano, todavia n-o identificado. 43 Luigi Groto, S’humana industria rivolgesse, quanto: cf. o exemplar n° 4082 da Biblioteca Nacional de Lisboa, p. 30; Alonso Perez, No tan rebelde Amor, ni desdeñosa: cf. Montemayor 1622: f. 316. 44 Tam crua nimfa, nem t-o fugetiva, cancioneiro LF, f. 47: Juromenha 1860-69 a tem incluído no vol. 2 da sua ediç-o, p. 29 (cf. Pimp-o 1994, Odes, n° xiii). 45 Ele mesmo comenta a sua própria façanha (Si humana industria rebolviesse quanto) no discurso Sobre las diferencias de composiciones, que introduz a parte iii da Fuente de Aganipe (Madrid 1646), também fazendo, nesse seu comentário, outra alus-o ao texto de Camões que lhe servira de modelo: «No hize caso de sugetarme a hazerla de ocho estancias, y assí es de doze, y el remate». 46 A saber: O duro inverno, que de monte a monte, e Lobo cruel na serra, ou na campina, ambas publicadas na Lusitânia Transformada, Lisboa 1607, f. 197v° e 278v° (cf. Cirurgi-o 1976: 92- 95). enquanto Alonso Perez e o pseudo-Camões só guardam a primeira (d3), Fern-o Álvares nas duas imitações que fez limita-se a reproduzir a segunda, em Lobo cruel colocando a cesura após a quarta sílaba, como em Petrarca (g5), em O duro inverno colocando-a após a sexta. Quanto a Faria e Sousa, a despeito do seu projecto altissonante, é o único, entre os imitadores, cujo texto n-o apresenta qualquer rima interna. Em conclus-o, do ponto de vista das duas rimas internas, só os textos de Bembo, de Groto e de Camões s-o, efectivamente, conformes ao modelo petrarquiano 47 . Quanto ao número de estâncias, a situaç-o é diferente. Conforme dissemos acima, o número de estâncias no texto de Camões está directamente relacionado com a identificaç-o do modelo trovadoresco de Petrarca. Uma vez resolvido o problema da falta do comiato, n-o escapou a Emmanuel Pereira Filho a disparidade entre o número de estrofes da canç-o de Petrarca (oito) e o número de estrofes do texto de Camões (apenas sete). A maioria das outras imitações, aliás, guarda o mesmo número de oito (Pietro Bembo, Luigi Groto, Alonso Perez, assim como as duas composições de Fern-o Álvares d’Oriente). Só podemos assinalar duas excepções, uma e outra, aliás, bem justificadas: trata-se da «sextina diferente», composta em sete estrofes pelo camonista anónimo autor de Tam crua nimfa 48 , e da outra imitaç-o feita pelo próprio Faria e Sousa. Assim sendo, nada será t-o justificado como supor que existe outra lacuna no texto camoniano, além da falta do comiato. De qualquer forma, é o que faz Faria e Sousa no seu comentário à sétima estância: «Presumo que anda troncada esta Oda; y que antes desta estancia avía otra; porque lo que dize en ella es cosa muy differente de lo que venía diziendo, y con que fenece la estancia antecedente» (p. 133). Entretanto, a soluç-o adoptada por Emmanuel Pereira Filho é muito mais subtil e engenhosa. Nada satisfeito (como dissemos, n-o sem raz-o) com o cotejo que Tassoni propõe entre o texto n° 29 de Petrarca e a canç-o xiii de Arnaut, logo unânimemente aceite pela crítica, o ilustre filólogo brasileiro formula a seguinte consideraç-o: «Mas suspeitamos que o modelo do poeta foi mais imediato e, tendo ou n-o tendo em mira os provençais, partiu da sextina (aliás, provençal e criada por Daniel)» (p. 115). Em outros termos, do mesmo modo que a sextina comporta seis versos distribuídos em seis estrofes, mais o comiato, também o texto de Camões teria sete estrofes de sete versos cada uma, mais o comiato. Com base na mesma argumentaç-o, no terceiro volume da sua ediç-o crítica da obra lírica de Camões, já depois de editar as nove canções reconhecidas como autênticas, o professor Leodegário A. de Azevedo Filho acrescenta em apêndice a única sextina de autoria incontroversa, seguida pela nossa canç-o, designando-a 183 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» 47 Portanto, Camões é o único, entre os peninsulares, «que teve fôlego para arrostar com o mortificante esquema rímico petrarqueano»: um esquema «verdadeiramente diabólico» (Pereira Filho 1974: 114). 48 A designaç-o, como diremos abaixo, encontra-se no próprio manuscrito LF. pelo neologismo «septina» 49 . Esta denominaç-o algo insólita (encontrada somente nas projecções matemáticas dos estudos dedicados à sextina, como organismo métrico susceptível de expans-o) está evidentemente em relaç-o com as vicissitudes da tradiç-o manuscrita, onde este tipo de poema figura como «sextina» (é a soluç-o proposta por Luís Franco Correia [LF] e pelo padre Pedro Ribeiro [PR]). Pelo contrário, o texto é definido por «ode» na tradiç-o impressa 50 , e é esta segunda designaç-o que prevalece nas edições modernas 51 . Talvez útil para evocar o ponto de vista dos testemunhos mais antigos, o termo «septina» n-o deixa contudo de assentar numa premissa incorrecta, isto é, a confus-o entre as duas categorias de rima e de palavra-rima 52 . Com base na curiosa paráfrase de Luís Franco Correia, acaso poderia ser mais útil a definiç-o de «canç-o diferente», ou seja, canç-o que reproduz o tipo mais antigo em voga entre os trovadores. De qualquer forma, um contemporâneo de Camões talvez tivesse dificuldade em identificar um esquema t-o raro, que é mesmo único no Canzoniere de Petrarca. A comparaç-o seria, sem dúvida, muito mais imediata com os nove exemplos petrarquianos de sextina. 184 Maurizio Perugi 49 LAF 1995: 587-622, texto editado com base em RH, aceitando as soluções propostas por Emmanuel Pereira Filho relativamente às duas variantes internas, bem como aos dois factores prosódicos (veja-se acima, nota 3). Além disso, com a intenç-o de se conformar ao «usus scribendi» de Camões, o editor modifica, no v. 14, a grafia padesço, presente em toda a tradiç-o (RH, RI e FS), em padeço, privilegiando, aliás, a liç-o de FS no v. 29 (cuidei por cudei RH, RI, porque em Os Lusíadas «é sistemático o emprego do ditongo / uy/ ») e no v. 38 (s-o por sam RH, RI, «como o fenómeno da rima claramente indica em Lus. iv,68»). O propósito de conformar, sempre que for possível, a grafia dos testemunhos à grafia garantida pelo texto de Os Lusíadas, é alcançado de forma declarada e constante ao longo de toda a ediç-o crítica, embora este af- de uniformizaç-o possa, às vezes, suscitar algumas perplexidades (sendo, aliás, contrário à prática normalmente adoptada pelos editores de textos românicos). 50 Na primeira ediç-o, o poema figura como Ode ii entre as cinco que ali foram impressas (RH, f. 45). Reaparece em RI (f. 53), onde é também atribuído a Camões; a atribuiç-o é, aliás, confirmada pelo Índice do Cancioneiro de P.e Pedro Ribeiro, feito nos fins do século xvii: o padre Ribeiro, logo após Foge-me pouco a pouco a curta vida, também chama «sextina» a este poema (PR, f. 83, ao lado esquerdo do incipit). Cf. aliás, em LF 47, com o título de «sextina diferente», o texto Tam crua nimfa, nem t-o fugetiva, escrito com certeza, conforme já dissemos acima, por algum epígono de Camões. O nome de «canç-o», que os italianos Bembo e Tassoni empregam correctamente em relaç-o ao texto de Petrarca, surge ainda em Alonso Perez e Fern-o Álvares d’Oriente. 51 No caso do nosso poema, a crítica moderna hesita na escolha do texto de base, que é RI em Pimp-o 1994, FS em Hernâni Cidade e Jorge de Sena (cf. Cidade 1946s.; Sena 1984: 116ss., ainda que sem editar o texto), RH em Salgado Júnior (cf. Salgado 1963). Rodrigues/ Vieira 1932 incluíram o texto entre as odes, como Faria e Sousa, de que copiaram o comiato (texto de Faria e Sousa, com emenda do hiato no v. 42 e aquela, sem sinal de crase, no v. 24). Hernâni Cidade também transcreveu o comiato e, tal como Rodrigues/ Vieira, modernizou algumas variantes de formas, cf. v. 2 e 34 (céu por ceo), 16 (creio por creo), 43 (suspeita por sos-), 51 (Deus por Deos); totalmente injustificada a emenda no v. 24 (Igual em lugar de Que iguale). Costa Pimp-o, Salgado Júnior e Maria de Lurdes Saraiva incluíram a canç-o entre as odes e sem comiato; além disso, esta editora emenda Saudades no v.43 (cf. Saraiva 1980). 52 Em outros termos, a designaç-o de «septina» só seria justificada se o esquema em quest-o fosse caracterizado por uma série de palavras-rimas, o que está longe de ser o caso. Uma relaç-o entre Verdi panni e o esquema da sextina, aliás, existe, embora de uma forma bem distinta do que foi pressuposto pelos teóricos do século xvi. Nos modernos manuais de métrica a distinç-o é cuidadosamente observada entre a sextina e o tipo de canç-o em «coblas unissonans», cujos escassos exemplos na literatura italiana, como dissemos, ficam essencialmente concentrados entre os séculos xiii e xiv. Contudo, no caso particular de Verdi panni, os metricólogos n-o deixam de sublinhar certa semelhança com a sextina. Com efeito, as duas formas têm um traço em comum: n-o se trata, porém, da palavra-rima (como implicariam as designações incorrectas das que falamos acima), mas sim da estrutura de «coblas dissolutas», isto é, a falta de toda relaç-o homofónica no conjunto de rimas, quer externas quer internas, que constituem a estrofe de Verdi panni 53 . Apesar deste paralelismo, que tem sentido unicamente no âmbito da versificaç-o provençal 54 , os dois esquemas n-o deixam de ser bem distintos. Uma confirmaç-o indirecta do que foi dito está na reflex-o teórica de Bembo. Ao explicar a particularidade métrica de Verdi panni, Bembo faz referência a outra passagem do mesmo tratado (Prose della volgar lingua i, 9) em que propõe uma lista sumária dos traços distintivos da poesia trovadoresca relativamente à lírica em «vulgar lingua», a saber: 1) a forma métrica da sextina; 2) o esquema de «coblas unissonans»; 3) a frequência de rimas internas; 4) o emprego de versos curtos, e até muito curtos, de três, quatro, cinco, oito e nove sílabas, em oposiç-o à clássica alternância de hendecassílabo e verso quebrado («versi rotti») da poesia italiana. Com efeito, é muito significativo que o trovador Arnaut Daniel seja ali mencionado por duas vezes: uma, como inventor («ritrovatore») da sextina; outra, porque teria composto todas as suas canções em «coblas unissonans», também recorrendo frequentemente às rimas internas. Nesta ficha métrica redigida por Bembo, a sextina já aparece como a forma arnaudiana por excelência. Como Verdi panni de Petrarca comporta também duas rimas internas, muito difíceis de imitar, n-o admira que os contemporâneos de Camões chamem simplesmente «sextina» (ou, também, «sextina diferente») ao único poema composto por Petrarca em «coblas unissonans». 185 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» 53 A explicaç-o mais límpida encontra-se em Bausi/ Martelli 1993: 94: «Questa canzone è detta comunemente a stanze unissonans; propriamente, però, questo termine indica canzoni nelle cui stanze, rimate, ricorrano sempre le medesime rime. Verdi panni, pertanto, dovrà considerarsi una combinazione della tecnica delle coblas unissonans con quella, tipica della sestina, delle coblas dissolutas (in base alla quale le rime sono irrelate all’interno di ciascuna stanza, e trovano rispondenza solo nei versi corrispondenti, anch’essi reciprocamente irrelati, delle altre stanze)». Cf. também Menichetti 1993: 121s. 54 Mais do que um paralelismo, melhor seria falar de uma relaç-o de inclus-o, também segundo o entendimento de Dante no tratado De vulgari eloquentia, ii, xiii, 2; cf. o comentário muito perspicaz de Mengaldo 1979: 227: «sine rithimo: si intende naturalmente assenza di rime all’interno della stanza, non nel complesso della canzone, ché anzi le coblas dissolutas sono di necessità unissonans . . . le coblas dissolutas (con la callida variante, la sestina), che rappresentano infatti la maggioranza nel canzoniere arnaldiano». 4. A integridade do texto Há actualmente duas maneiras de explicar a diferença de extens-o existente entre o texto de Camões (com sete estrofes apenas) e as oito do arquétipo petrarquiano, bem como das suas imitações. A hipótese mais provável, e mais antiga também, consiste em supor a existência de uma lacuna na segunda parte da composiç-o. A mais subtil, e mais moderna também, prefere imaginar um aperfeiçoamento imposto por Camões ao seu modelo, apesar da fidelidade observada quanto ao número de estâncias das cinco imitações, que podem considerar- -se perfeitas. Conforme acabamos de ver, esta segunda explicaç-o só assenta na hipótese de Camões ter combinado dois modelos, Verdi panni mais a sextina, a despeito da diferença primordial existente entre os dois esquemas: o primeiro prevê nove «rimas dissolutas», duas das quais internas, para um número de estrofes teoricamente indeterminado; o segundo postula necessariamente seis palavras-rimas para seis estrofes. Aliás, a unicidade do modelo petrarquiano, junto com a estabilidade do número de estrofes na maioria das imitações, obrigam-nos a considerar a hipótese duma lacuna como, de longe, a mais económica. Assim sendo, é ou n-o é razoável fazer conjecturas sobre a falta de uma estância no texto de Camões? N-o há, entre o seu poema e os de Petrarca e de Bembo, relações temáticas t-o estreitas, que possibilitem uma resposta certa à nossa quest-o. No caso em que houvesse uma lacuna, ela existiria, com certeza, na segunda parte da canç-o, como já supôs Faria e Sousa no seu comentário. A análise temática efectuada por Emmanuel Pereira Filho supõe «dois eixos básicos e paralelos» formados respectivamente pelas estrofes i-iii e v-vii, «que em conjunto apresentam uma unidade de sentido, cada uma por si», sendo a quarta estrofe considerada como «um elemento de ligaç-o entre a primeira e a segunda subestrutura» (Pereira Filho 1974: 123-31). Por admirável e penetrante que seja, a análise de Emmanuel Pereira Filho pode, contudo, ser objecto de algumas críticas. Assim, o Touro e a flor, na segunda estrofe, n-o podem ser encarados como «símbolos eróticos» (ib.: 125), pois os dois aludem à mais célebre determinaç-o astronómica que Petrarca empregou para situar a data do seu namoro: além disso, note-se que Camões também se serve em Os Lusíadas deste exórdio primaveril, cuja origem se encontra, afinal, em Virgilio 55 . Nem t-o pouco o verbo enredar, na evocaç-o dos v. 40s., e naqueles cabelos, que soltando ao manso vento, a vida me enredou 186 Maurizio Perugi 55 Cf. Rvf 9.1-2 Quando ’l pianeta che distingue l’ore/ ad albergar col Tauro si ritorna (= Verg. Georg. i, 217s.); Lus. ii,72 Era no tempo alegre quando entrava,/ No roubador de Europa a luz Febea,/ Quando hum, & o outro corno lhe aquentava/ E Flora derramava o de Amalthea («Quiere dezir mi P. que Flora derramava flores», Faria e Sousa 1639: 496). pode ser atribuído, sem mais, ao «negro fado (vida destinada) inelutável, que afasta, enredando-lhe a vida para tirar-lhe o frescor da rosa, mas n-o como libertaç-o e sim como pris-o (vida que é morte)» (ib.: 127). Trata-se, mais uma vez, de uma metáfora petrarquiana que alude, por um lado, aos cabelos louros de Laura 56 e, por outro, à personificaç-o bíblica de Amor como caçador de pássaros 57 . Nem, finalmente, o mantimento que me sustentou (v. 48) poderia ser comparado ao tormento de Tântalo (ib.: 131), pois estamos perante outra metáfora codificada na linguagem trovadoresca, que Petrarca exprime normalmente recorrendo à família lexical do verbo nutrire 58 . Ademais, cabe assinalar uma discordância de interpretaç-o entre Emmanuel Pereira Filho e Faria e Sousa no que se refere ao v. 33. O primeiro, a fim de completar a tríade de figuras mitológicas que, a seu ver, será preciso identificar na segunda parte da canç-o 59 , pensa reconhecer o mito de Ícaro no verso mas, quando quis voar ao Céu, cantando, de acordo com as duas outras correspondências que ele estabeleceu, por um lado, entre a «pris-o (fado: vida destinada)» e as Parcas e, por outro, entre o «tormento (mantimento que foge)» e Tântalo. Ora, n-o é Ícaro que Faria e Sousa cita no seu comentário a este verso, mas sim «la alhondra, o cogujada (en Portugues, cotovia) porque sola esta ave canta suavissimamente subiendo al Cielo» (p. 132). E o gerúndio cantando bastaria para certificar que realmente Camões alude a este pássaro t-o ilustre na literatura europeia, desde Bernart de Ventadorn e Dante, até Shelley e ao poeta italiano Giovanni Pascoli. Vale a pena observar que os dois versos seguintes, entendimento e engenho me cegou/ luz de t-o alto preço (v. 34s.), est-o em relaç-o bem clara n-o apenas com a canç-o Manda-me Amor, v. 10 (com a pena o engenho escurecendo), mas também com o soneto n° xv da ediç-o crítica de LAF 1987, Em quanto quis Fortuna, que com certeza teria desempenhado uma funç-o de prólogo, se Camões tivesse reunido os seus poemas 60 . Vejam-se os v. 5-7: 187 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» 56 Rvf 181.1-3 Amor fra l’erbe una leggiadra rete/ d’oro et di perle tese sott’un ramo/ dell’arbor sempre verde ch’i’ tant’amo. Camões utiliza o mesmo verbo e a mesma imagem na redacç-o mais antiga de Manda-me Amor, 24-26 soltava por linda arte/ os cabelos, em que fui enredado,/ ao doce vento esquivo. Trata-se, porém, de uma das imagens mais frequentes no Canzoniere, cf. o comentário de Santagata 1996 a Rvf 90.1, e de modo particular, Rvf 159.6 chiome d’oro sì fino a l’aura sciolse; 270.59 spargi co le tue man’ le chiome al vento. 57 Quanto ao significado de destinada, bastará citar o comentário de Faria e Sousa: «porque nació destinado a ser fino amante desta única Hermosura» (p. 132). 58 Cf. especialmente Rvf 331.16s. così, mancando a la mia vita stanca/ quel caro nutrimento, designando - como é óbvio - a esperança. 59 A primeira parte implicaria, por seu lado, uma alus-o ao «amor do fauno pela ninfa esquiva, de P- correndo em v-o após Sirinx e sublimando o seu desejo frustrado na flauta», pois «o sincretismo entre Sátiro e Fauno é bastante conhecido, bem como a identificaç-o deste com a figura de P-» (ib.: 124, 130). É, precisamente, nesta «corporificaç-o» (embora nada explícita) da frustraç-o erótica que assenta um dos traços marcantes da interpretaç-o proposta por Emmanuel Pereira Filho. 60 Já Askins 1979: 20-25 inclui Em quanto quis Fortuna num grupo de sonetos com funç-o claramente introdutória. Porém, temendo Amor que aviso desse minha escriptura a algum juízo isento, escureceo-me o engenho, com o tormento 61 O arquétipo desta imagem está em Rvf 248.13 l’ingegno offeso dal soverchio lume, soneto que Camões, na nossa opini-o, também terá aproveitado, pois a primeira das duas quadras já contém a comparaç-o entre os olhos de Laura e o sol (luz de t-o alto preço), bem como o conceito que Nunca . . . Natura produziu uma creatura t-o perfeita, cuja alta pureza . . . ao mundo se encobriu 62 . Para apoiar a tese contrária à de Emmanuel Pereira Filho que, ao analisar a canç-o camoniana no seu conjunto, defende que a mesma n-o pode comportar mais que sete estrofes, outros pormenores poderiam ser salientados como, por exemplo, o facto de a quarta estrofe n-o ser um elemento de ligaç-o mas, antes, o elemento final da primeira parte da canç-o, toda organizada com base no mesmo esquema sintáctico, cujas variantes correspondem às quatro similitudes, uma por cada estrofe: i T-o + nunca . . . como Aurora = fermosa, mansa fera ii Nunca . . . como bonina . . . rosa = esta flor iii N-o creio . . . que assi ninfa . . . fugindo e desprezando iv Nunca, enfim . . . Igual cousa bela e rigurosa Como se vê, nas estrofes iii e iv o segundo termo da comparaç-o torna-se implícito, enquanto o poeta realça a estrutura oximórica como elemento constante que percorre toda a canç-o 63 . Dentro desta complexa rede de relações lexicais e semânticas, destacam-se as ligações muito estreitas entre as estrofes iii e iv, o que prova, mais uma vez, a estrutura compacta da primeira parte: por um lado, fugindo e desprezando/ este tormento (v. 19s.) corresponde a que as dores em que vivo estima em nada (v. 25); por outro lado, cujo brando coraç-o/ de amores comovesse fera irada (v. 17s.) fica resumido pelo v. 26 mas com t-o doce gesto, irado e brando. 188 Maurizio Perugi 61 Note-se que o soneto apresenta mais uma rima comum ao nosso texto, isto é pensamento no v. 3, enquanto entendimento ocupa o centro do v. 14. 62 Cf. Rvf 248.1-4 Chi vuol veder quantunque po’ Natura/ e ’l Ciel tra noi, venga a mirar costei,/ ch’è sola un sol, non pur a li occhi miei,/ ma al mondo cieco, che vertù non cura. Sobre o significado de encobriu, veja-se o comentário de Faria e Sousa: «Quiere dezir, que no era el mundo capaz de entender los quilates de tan rara hermosura . . . . Finalmente era divina e no la alcançava el entendimiento humano». 63 A partir de fermosa, mansa fera (v. 5), eco da celebérrima fera bella e mansueta de Rvf 126.29 (cf. ib. 23.149 quella fera bella et cruda), 135.45 (questa fera angelica innocente), 152.1 (Questa humil fera). O cume desta figura estilística encontra-se, come bem sublinhou Faria e Sousa, precisamente na quarta estância: «bella por la forma, y rigurosa por la condición ... blando por lo bello de la forma, ayrado por lo riguroso de la condición . . . la vida le elevó la forma; el sentimiento la condición. Hermosa estancia por estas armónicas correspondencias» (p. 131). De qualquer forma, fica bem claro que o v. 29 funciona como charneira, assinalando o início da segunda parte do poema 64 , t-o compacta como a precedente, conforme sugere por exemplo o facto de a quinta e a sétima estrofe apresentarem uma correspondência exacta com a segunda parte do soneto Eu cantarei de amor t-o docemente 65 : brandas iras, sospiros descuidados, temerosa ousadia e pena a[u]sente. Também, Senhora, do d[e]spre[z]o honesto de vossa vista branda e rigurosa, contentar-me-ei dizendo a menor parte. Porém, p[e]ra cantar de vosso gesto a composiç-o alta e milagrosa, aqui falta saber, engenho e arte. A estrutura oximórica é a mesma, bem como os lexemas mais significativos (desprezo, branda e rigurosa, gesto). Já Faria e Sousa, ao comentar a quarta estância do nosso texto, tinha aproveitado o motivo da inadequaç-o poética declarada nos últimos versos deste soneto. Para concluir, vale a pena salientar mais uma série de correspondências lexicais bem precisas, que parecem sugerir um esquema com base numa tripla oposiç-o. Com efeito, as estrofes i e v têm o lexema manso em comum, correspondendo fermosa, mansa fera do v. 5 a doce dureza e mansid-o do v. 31. As estrofes ii e vi s-o complementares por comportarem, uma e outra, vários traços marcantes do que já designámos por exórdio primaveril, a saber, os olhos (os olhos inclinando, v. 12 = nos olhos angélicos, v. 38) e os cabelos da mulher amada (v. 40), numa relaç-o directa com a determinaç-o astrológica do namoro 66 . Quanto às estrofes iii e vii, parece-nos sumamente significativa a dupla menç-o de Amor, bem como a correspondência entre fera irada . . . fugindo e desprezando/ este tormento (v. 18ss.) por um lado, e penas de alma desprezada, / fera esquivança (v. 47) por outro. Portanto, a nossa análise defende a tese de que falta, ao texto desta canç-o camoniana, uma estrofe cuja colocaç-o primitiva teria sido logo antes do comiato. Em resumo, a tradiç-o impressa privou-nos, verossimilmente, n-o apenas do comiato, mas também da estrofe anterior. 189 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» 64 A correspondência anáforica entre o v. 28 (Que a pena lhe agradeço) e o v. 14 (À pena que padeço), final da segunda estrofe, contribui para marcar a passagem da primeira parte para a segunda. E talvez n-o seja acidental a correspondência, assinalada por Faria e Sousa, entre este v. 28 e um verso de Ausias March (E res no faen en contra son voler,/ desitjant be la dolor li graesch), autor t-o conhecido por Camões, como alheio aos modelos aproveitados na canç-o que estamos a analisar. 65 Outro soneto com funç-o provavelmente introdutória, n° 19 na ediç-o crítica de LAF 1987 (onde os sonetos v-o por ordem alfabética). 66 Cf. Manda-me Amor, v. 22-26: «No Tauro entrava Febo . . . quando a Amor soltava, / em fios de ouro, as tranças encrespadas / ao doce vento estivo». 5. Conclus-o Ao estudarem esta canç-o, Faria e Sousa e, três séculos mais tarde, Emmanuel Pereira Filho, embora concordando em julgar o comiato como autêntico, divergem contudo em dois detalhes importantes. O erudito seiscentista, como já dissemos, presume que o texto anda falho de uma estância, situando a lacuna provavelmente entre a sexta e a sétima estrofes; por outro lado, chama-lhe «ode», apesar de identificar correctamente o seu esquema métrico com base na canç-o n° 29 de Petrarca. Emmanuel Pereira Filho, pelo contrário, julga o texto completo, fundamentando a sua opini-o na hipótese de Camões ter adaptado ao molde da sextina a canç-o de Petrarca, que lhe serviu de modelo. Em nossa opini-o, se algum motivo ainda subsiste para retomar os termos deste debate, tal n-o será sen-o um indício mais da actualidade que, ainda hoje, têm as obras destes dois grandes camonistas.Ademais, n-o será inútil acrescentar que trabalhos como o presente n-o teriam sido possíveis sem a ediç-o crítica de Leodegário de Azevedo Filho, a primeira que toma em conta os testemunhos manuscritos da obra lírica camoniana. Genève Maurizio Perugi Tábua de abreviaturas BdT = Pillet/ Carstens 1933 FC = Comis-o Executiva do iv Centenário da Publicaç-o de «Os Lusiadas» (ed.), Cancioneiro de Luís Franco Correa (1557-1589), Lisboa 1972 FS = Faria e Sousa 1685-89 PR = «Indice», in: Vasconcelos 1924: 65-81 RH = L. de Camões, Rythmas, Lisboa, por Manuel de Lira, 1595, ed. E. Lopes RI = L. de Camões, Rimas, acrescentadas nesta segunda impress-o, Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1598, ed. E. Lopes Rvf = F. Petrarca «Rerum vulgarium fragmenta», in: id., Canzoniere, ed. G. 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Lisboa 1980] 191 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» Apêndice Texto conforme LAF 1995: 587s. i T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa, nunca no céo saiu a Aurora, no princípio do ver-o, às flores dando a graça costumada, como a fermosa, mansa fera, quando 5 um pensamento vivo me inspirou, por quem me desconheço. ii Bonina pudibunda, ou fresca rosa, nunca no campo abriu, quando os raios do Sol no Touro est-o, 10 de cores diferentes esmaltada, como esta flor, que, os olhos inclinando, o sofrimento triste costumou à pena que padeço. iii Ligeira, bela Ninfa, linda, irosa, 15 n-o creo que seguiu Sátiro, cujo brando coraç-o de amores comovesse fera irada, que assi fosse fugindo e desprezando este tormento, aonde amor mostrou 20 t-o próspero começo. iv Nunca, em fim, cousa bela e rigurosa Natura produziu, que iguale àquela forma e condiç-o, que as dores em que vivo estima em nada; 25 mas com t-o doce gesto, irado e brando, o sentimento e a vida me enlevou, que a pena lhe agradeço. 192 Maurizio Perugi v Bem cuidei de exaltar em verso, ou prosa, aquilo que a alma viu, 30 antre a doce dureza e mansid-o, primores de beleza desusada; mas, quando quis voar ao céo cantando, entendimento e engenho me cegou luz de t-o alto preço. 35 vi Naquela alta pureza deleitosa, que ao mundo se encubriu, e nos olhos angélicos, que s-o senhores desta vida destinada, e naqueles cabelos que, soltando 40 ao manso vento, a vida me enredou, me alegro e entristeço. vii Saüdade e sospeita perigosa, que Amor constituiu, por castigo daqueles que se v-o; 45 temores, penas d’alma desprezada, fera esquivança, que me vai tirando o mantimento que me sustentou, a tudo me ofereço. viii Amor isento a uns olhos me entregou, 50 nos quais a Deos conheço. 193 Luís de Camões, «T-o suave, t-o fresca e t-o fermosa» 194 Réponse à Alain Corbellari 1 Dans Vox Romanica 57 (1998), Alain Corbellari concluait en ces termes une critique systématique et violente de mon livre: «Ouvrage mal dégrossi, Tristan et Iseut. Genèse d’un mythe littéraire, est plus un livre en devenir qu’une enquête achevée; Jacques Chocheyras a incontestablement beaucoup voyagé dans les deux Bretagnes et dans les manuscrits anciens: son ouvrage ne sera pas inutile aux amateurs d’anecdotes et d’idées ingénieuses, mais l’introuvable synthèse reste à écrire». Je sais gré à l’auteur de ce long compte rendu pour l’intérêt ainsi manifesté à mon travail. Mais je ne puis laisser en réserver la lecture aux «amateurs d’anecdotes» sans une exposition complète de son contenu et de ses conclusions. C’est pourquoi, en matière de postface, je voudrais dresser ici le bilan de cette entreprise. Pour ce faire, j’adopterai le plan préconisé par mon préfacier Philippe Walter (lui-même égratigné au passage) pour l’étude des mythes: «Le temps, l’espace et le nom propre» («Le mythe de Tristan et Yseut, un mythe hérité et un mythe inventé», Journal of School of Foreign Languages 15 [February 1997], Nagoya University of Foreign Studies/ Japon: 165-74). Ce sont avant tout les noms des protagonistes qui fondent la fable. Et d’abord, en l’occurrence, celui de l’héroïne que je fais venir d’Y-sillid, «la magicienne», nom bâti sur le radical du mot «œil» et forme qui, avec son article gallois et son substantif du vieil irlandais, recoupe exactement son lieu de naissance et désigne aussi bien, chez Gottfried de Strasbourg, la mère que la fille. Le nom du héros, ensuite qui, par étymologie populaire, passe du picte Drostan (Drustanus sur la stèle de Fowey) à Trystran, «l’homme des rendez-vous» (trystr, en vieil anglais), permettant ainsi à la légende de passer du domaine de la chasse à celui de l’amour. Le nom du «roi Marc» ensuite, King Mark en anglais provenant de la forme Cinmar, le cunoworus de la stèle, père de Drustanus. Et si la troisième ligne lue par John Leland en 1538 portait le nom de domina *adsiltia, comme je le propose, voilà le triangle amoureux constitué dès le v e siècle. L’espace, c’est celui de la trame de l’estoire, telle que la révèle le conte irlandais de Diarmaid et Grainne: une histoire de défi (geis) amoureux de l’héroïne auquel répond la chasteté volontaire du héros. Passée d’abord en Écosse, elle entre ensuite dans le folklore gallois grâce aux colonies irlandaises du sud du Pays de Galles, s’attachant au personnage du Drostan qu’elle entraîne avec elle. Elle est ensuite véhiculée le long de la grande voie maritime et terrestre qui, de la côte galloise, traverse de part en part la Cornouailles où elle s’enracine autour de l’estuaire de la Fowey avant de poursuivre son tracé vers les côtes du nord de la Bretagne. C’est cette route que suivent les «raids» irlandais en Cornouailles, comme le montrent les vestiges de la muraille érigée contre eux au nord de cet estuaire, et la présence de l’île Saint-Samson. C’est aussi la route des saints irlandais comme ce saint éponyme (et ce jusqu’en Bretagne). Trouvent leur explication, sur le terrain, le «buisson» ceint d’un fossé, la chapelle à la verrière «qu’un saint y fit, purpurine» et, le plus important, la Blanche-Lande, terme générique qu’on retrouve du nord de l’Angleterre au Maine en France, pour désigner un «no man’s land» neutralisé entre deux forces en présence pour favoriser les négociations et les trêves. Le temps, enfin. C’est évidemment l’élément déterminant dans l’évolution d’une légende depuis sa lointaine origine jusqu’à sa forme littéraire élaborée, des siècles plus tard. Sans l’influence des changements survenus dans la société, non seulement elle s’enrichit et se modifie mais, je le disais déjà il y a vingt ans, elle se charge de nouvelles significations. C’est ainsi que le conte irlandais de geis et de chasteté volontaire a dû, pour avoir survécu, être Entgegnung - Réponse 1 A. C ORBELLARI , *J. C HOCHEYRAS , Tristan et Iseut. Genèse d’un mythe littéraire, Paris 1996; VRom. 57 (1998): 252-56. 195 adapté de force à ce bouleversement majeur qu’a été l’introduction du christianisme dans la culture celte ou celtico-romaine. La seule façon de sauvegarder cet élément capital du récit était d’en faire une histoire de ce «white martyrdom» recommandé par la secte irlandaise des «Culdees», à la suite des Actes apocryphes d’apôtres, en particulier de saint André, en honneur en Écosse. Bref, de St. Andrews en Écosse au prieuré de St. Andrew de Tywardreath près de la Fowey, l’estoire s’est ainsi chargé d’une coloration hérétique qu’il était bien difficile d’avouer, sinon d’utiliser. C’est là qu’intervient selon moi, le génie d’un clerc normand de l’abbaye Saint-Serge et Saint-Bacchus d’Angers, sans doute envoyé au prieuré cornique cité, qui dépendait de cette abbaye depuis la conquête normande. C’est son génie qui a transformé une histoire recueillie sur place en un poème où le vin herbé de la Saint-Jean tient lieu de geis et où l’innocence impossible à croire (socialement parlant) du couple quasi incestueux recouvre l’union inaccessible (physiquement) des héros primitifs. Incrédibilité qui n’empêche pas les amants d’affirmer, en toute tranquillité, sinon bonne foi, cette innocence et la protection divine que celle-ci leur assure. L’épée nue de Tristan symbole d’un phallus perpétuellement dressé, en constitue le témoin. D’où la contradiction permanente au cœur de l’histoire. Que cet auteur, Béroul, ait, vingt ans plus tard, repris et développé son œuvre en y faisant intervenir les personnages d’Arthur et de sa cour et des tableaux (mais non l’esprit) de la vie courtoise, selon le canon romanesque de cette époque, cela me paraît fournir une explication de la double rédaction du poème. Je ne prétends nullement avoir dans mon livre opéré une synthèse totale et définitive de la genèse du mythe, mais je pense avoir construit un modèle opératoire complet, dont les matériaux pourraient être utiles à d’autres afin de faire progresser la connaissance d’un des mythes littéraires fondateurs de notre culture. Cela mérite au moins je pense, que l’on juge mon ouvrage avec sérénité. J. Chocheyras Entgegnung - Réponse